Raríssimo livro de óbitos conta parte da história de escravizados em Minas
Documento sobre o Cemitério dos Escravizados de Bom Jesus do Amparo será usado por professores da UFMG para pesquisar a vida dos enterrados
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Siga no"O 20 de dezembro de 1951 sepultou-se no Cemitério da Fazenda do Rio São João Maria Martins, preta de Nação, solteira, de idade de 45 anos, pouco ou mais ou menos: padecia de uma sarna brava, que lhe durou muito tempo, e de um ataque que lhe sobreveio a 28 de dezembro, morreu neste mesmo dia em que foi ungida, não podendo ser confessada porque perdeu a fala, era escrava do senhor Joaquim Camilo Teixeira da Motta.” Assim está descrita a morte de uma das centenas de pessoas escravizadas, vindas de diversos cantos do continente africano para servir de força de trabalho no Brasil, última nação a abolir a escravidão, por meio da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888.
O registro raro faz parte de cerca de duas centenas de óbitos de escravizados e "forros" – como eram chamados os cativos que obtinham a liberdade – falecidos entre 1847 e 1877 em Bom Jesus do Amparo, município da Região Central de Minas, a 73 quilômetros de Belo Horizonte. Eles estão listados em uma pequena caderneta com capa de couro, de 16 x 11 centímetros e 77 páginas, guardadas há quase 180 anos pela família Motta, proprietária original das terras onde, ainda hoje, está preservado o cemitério onde essas pessoas foram inumadas.
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O pequeno caderno foi ado de geração em geração, enrolado em um pano preto para evitar a luz e, consequentemente a degradação, e guardado dentro de uma caixa de madeira. Ele segue sob a guarda de Hortência Motta do Espírito Santo, que o herdou de seu pai, Moacir de Figueiredo Motta, após ter sido restaurado e digitalizado pela Prefeitura de Bom Jesus do Amparo, município que abriga o Cemitério dos Escravizados, onde essas os escravizados e alforriados estão enterrados.
O documento é um relato precioso e raro de como padeciam e de onde vinham os escravizados que foram a principal força de trabalho de Minas Gerais, estado de destino da maioria das pessoas traficadas da África para o Brasil, durante os quase 390 anos de escravidão. Relata também a dificuldade das mães escravas em cuidar dos filhos pequenos, as doenças que mais acometiam as crianças, denominadas “inocentes”, e a obrigatoriedade dos ritos católicos para que pudessem ser sepultados.
Uma história pouco contada
O livro de óbitos foi digitalizado e vai ser usado pelo Departamento de Arqueologia e Antropologia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para uma pesquisa sobre o Cemitério dos Escravizados de Bom Jesus do Amparo e a vida deles no Brasil colônia, história pouco contada, apesar da contribuição fundamental dessa população para a construção do país.
De acordo com o secretário de Cultura de Bom Jesus de Amparo, Eduardo Motta, apesar de restaurado, o livro não pode ser manuseado, devido à sua fragilidade. Segundo Motta, o trabalho de restauro ficou a cargo de um ateliê especializado, que recuperou as páginas usando papel japonês bem fino e meticulosamente colado em toda extensão das folhas originais. As folhas também foram costuradas e a capa de couro restaurada.
Páginas arrancadas
Cuidadosamente manuscritas, as anotações da morte dos escravizados, grande parte deles crianças e bebês, estão registradas em 53 folhas, as outras 24 estão em branco. No entanto, a quantidade de óbitos anotados pode ser ainda maior, pois algumas páginas dessa caderneta foram arrancadas. Gustavo Motta, de 47 anos, filho de Hortência, afirma ainda que há relatos na família de que existiam outros livros de óbitos, cujo paradeiro é desconhecido.
A anotação de nascimentos, casamentos e mortes foi adotada pelo governo provincial mineiro, a partir de 1836, por meio de um decisão que obrigava as paróquias a informar semestralmente ao governo central os batizados (nascimentos), casamentos, enterros, falecimentos e sacramentos, que são até hoje responsabilidade da Igreja Católica. Mas o registro civil de maneira geral e formalizada só ou a ser obrigatório a partir de 1874.
Idade incerta e moléstias
Com exceção das crianças, cujo registro do nascimento era mais preciso, grande parte dos mortos anotados no livro de óbitos tem idade incerta. As moléstias que mais matavam eram identificadas como sarna, lombrigas, tripas, doença do fígado, dentição, cancro, tísica e sífilis. Ou o caso do escravizado Joaquim José, falecido em março de 1854, aos 60 anos, “em consequência de comer carvão”.
Um manual de doenças escrito pelo médico português Luiz Gomes Ferreira, que viveu no Brasil durante cerca de 20 anos, no século 18, entre 1707 e 1733, aponta que essas doenças eram, em sua maioria, causadas pelas péssimas condições de alimentação e habitação dos escravizados, cuja taxa de mortalidade era mais que o dobro do restante da população, e também pelos descasos dos senhores, que consideravam mais barato repor os escravizados do que garantir condições dignas de vida e saúde.
Também era anotado o estado civil, se era batizado, confessado e se recebeu a extrema-unção, ritos obrigatórios da Igreja Católica.
Trazidos da África
A origem deles quase sempre era identificada, até porque fazia parte do nome português com o qual eles eram rebatizados ao chegar na Brasil, mas também de maneira imprecisa, misturando às etnias dos escravizados com os portos na África onde eles eram embarcados, como João de Moçambique, Tereza de Benguela, Camillo do Congo, Rosa Cabinda. Os escravizados nascidos no Brasil eram identificados pela palavra crioulo e também os que obtiveram a liberdade.
“Os escravizados recebiam o nome de batismo e a etnia ou local de partida deles da África”, afirma a historiadora Angela Aparecida Ferreira, natural de Bom Jesus do Amparo, bisneta de escravizados, e pesquisadora da origem das comunidades negras do município. Segundo ela, os escravizados de Bom Jesus pertenciam a diversas etnias africanas. Eram, segundo ela, de Angola, Benguela, Cabinda, Cassange, Congo, Libolo, Mandinga, Mina, Moçambique, Monjolo, Rebolo, além de outras não especificadas.
“Essa confirmação das etnias africanas, presentes em uma pequena localidade como o território de Bom Jesus do Amparo, é um significativo exemplo que nos permite entender muito de perto a grande importância e diversidade dos africanos vinculados ao trabalho compulsório do Brasil colonial e imperial”, explica. Em suas pesquisas nos documentos de batismo das crianças escravizadas na cidade ela chegou a registrar, entre 1839 a 1860, o nascimento de 96 bebês nas propriedades de João da Motta Ribeiro, dono da Fazenda Rio São João, que mantinha o livro de óbitos e o Cemitério dos Escravizados. Outras 118 crianças, relata Angela, eram nascidas em terras dos demais proprietários identificados na cidade.
Ameaça em Santa Luzia
A historiadora Marcelina das Graças de Almeida, que se dedica aos estudos cemiteriais, afirma que a existência de registros, em livros ou lápides em cemitérios, sobre a morte de escravizados é muito rara. “Porque eles não eram considerados gente, eles eram considerados mercadorias. Não tinham direito a sepultamento digno e muito menos registro de sua agem”, afirma.
Segundo ela, durante muitos anos seus corpos foram abandonados. A preocupação em enterrar, afirma, começou de fato a partir das descobertas sobre os problemas sanitários da convivência entre mortos e vivos e também por causa do surto de cólera, por volta de 1850. Os escravizados, segundo ela, que pertenciam à irmandades religiosas tinham direito a um sepultamento mais digno, mas nunca nos moldes do garantido às pessoas brancas. De acordo com a historiadora, os que existiam, mesmo os ligados às irmandades, foram destruídos.
E os que restaram lutam para sobreviver em nome da memória da população escravizada, a principal responsável pela formação econômica do Brasil como nação e cuja contribuição forjou o povo brasileiro, destaca o sociólogo Glaucon Durães, membro do Movimento Salve Santa Luzia e co-vereador no município, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde existe o Cemitério dos Escravos.
Riscos ao patrimônio
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e declarado patrimônio de interesse cultural relevante para Minas Gerais por lei aprovada pela Assembleia Legislativa, no final de 2023, o cemitério está localizado na zona rural da cidade. O local é cercado por um muro de “pedras lagartixa”, cortadas à mão e unidas com óleo animal, técnica utilizada pelos escravizados da região.
Construído entre os séculos 17 e 18, em uma área de cerca de 150m², segundo Durães, o cemitério está ameaçado pela possibilidade de construção de duas estradas. Uma para dar o a um condomínio na região e outra para servir de alça para o futuro Rodoanel. De acordo com Durães, há uma mobilização da comunidade para que isso não aconteça, mas o caso ainda não está definido. Ele informa que o Ministério Público Federal (MPF) determinou a realização de uma audiência pública com a comunidade para discutir o assunto. O local, afirma Glaucon, é palco de celebrações de diversas matrizes religiosas e um patrimônio vivo da memória da população escravizada na cidade.
“É praticamente o único registro material da presença da negritude na cidade. A gente tem todo um processo de demolição de senzalas, de sumiço dos instrumentos da escravidão no centro histórico e todo um processo apagando dessa memória. (...) Se você ar uma rodovia aqui ou ali, vão construir um bar, uma lanchonete, uma farmácia, como é que fica um espaço desse?”, questiona. Para ele, a urbanização do local vai colocar em risco o cemitério e também comprometer as práticas religiosas.